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A pseudociência mata

Precisamos registrar a verdade fielmente,
por mais cruel ou assustadora que ela seja.
Afinal, a verdade será útil – algum dia...
Yuriy Trifonov, 1965

   Luis A. Florit e Fernando Fernandez


Durante a pandemia de Covid-19, todos sentimos na pele os estragos que a ignorância, o negacionismo, e até os cientistas colaboracionistas com sede de poder (ou do seu momento de fama) podem trazer à sociedade. Mas, se pensarmos bem, nem precisava da Covid. A história está cheia de exemplos, alguns até mais destrutivos que o próprio negacionismo da Covid. O caso Trofim Lysenko talvez seja um dos mais interessantes, ilustrativos... e apavorantes. Uma história louca que mistura genética, ideologia, farsa científica, perseguição, fome e morte. Mas muita morte. Morte numa escala colossal.

Mas para melhor entender essa tragédia, compreender seu contexto e apreciar suas implicações, é melhor saborear primeiro um pouco do desenvolvimento da genética – uma história fascinante por si só.

Uma breve história da genética

Bem antes de Darwin, a ideia de que havia evolução já era bem aceita; o que ninguém sabia era como ela acontecia. Em 1809, Jean-Baptiste Lamarck publica Philosophie Zoologique, onde aparece a primeira teoria coesa de evolução biológica. Nele, dentre várias outras ideias, reforça a noção, já no ar na época, de que um organismo pode passar para sua prole características físicas que adquire, através do uso ou desuso, durante a sua vida: a herança de caracteres adquiridos. O exemplo típico seria o pescoço da girafa: a prole nasceria com pescoços longos porque os pais os esticavam para alcançar as folhas mais suculentas no topo das árvores.

Cinquenta anos mais tarde, em A Origem das Espécies, Charles Darwin afirma que a seleção natural é o motor da evolução biológica. Porém, ainda não se sabia como a seleção natural de fato operava nos organismos biológicos. Um ponto crucial é que não se sabia qual era a base física (que Darwin percebia que precisava existir) da hereditariedade, ou seja, da transmissão de características dos pais para os filhos. Neste cenário de conhecimento tão incipiente, a ideia lamarckista de herança de caracteres adquiridos certamente continuava sendo uma das várias possibilidades.

Origin_of_Species - Public Domain

Nessa mesma época, com base em trabalhos experimentais com plantas de ervilha no quintal do seu mosteiro, o monge tcheco Gregor Mendel chega à conclusão de que a hereditariedade é o resultado da transmissão de certas 'unidades discretas de herança', ou genes, embora ainda não associados a componentes biológicos concretos. Infelizmente, esta teoria publicada em 1863 ficará esquecida durante as quatro décadas seguintes.

No começo do século XX as ideias de Mendel são redescobertas. Poucos anos depois, em 1928, aparecem as primeiras evidências fortes de que o DNA, uma molécula encontrada no núcleo das células 60 anos antes, seria quem carrega os genes. A grande síntese moderna da genética, unindo as ideias de Mendel, Darwin e Wallace, é alcançada nas décadas de 1920 a 1940 pelo trabalho de geneticistas como Ronald Fisher, J.B.S. Haldane e Theodosius Dobzhansky, do sistemata Ernst Mayr, e outros cientistas. Essas ideias são popularizadas em 1942 por Julian Huxley em seu livro Evolution: the Modern Synthesis. Com isso, o lamarckismo torna-se definitivamente obsoleto. Em 1953, Francis Crick e James Watson descobrem como a informação genética no DNA é de fato passada aos descendentes: graças à informação duplicada presente na sua estrutura de dupla hélice. Notavelmente, esta forma de replicação já tinha sido sugerida em 1927 por Nikolai Koltsov.

O telão se fecha com fogos de artifício, comemorando um dos maiores feitos da ciência na história, obra de mais de um século de pesquisas de dezenas de mentes brilhantes.

Lysenko na União Soviética

Retrocedamos agora alguns anos, logo após o surgimento da União Soviética, onde a nossa história realmente acontece.

Em 1921, poucos anos após a revolução russa, a guerra civil e uma seca que destrói 20% das plantações de toda a União Soviética castigam 90 milhões de pessoas e matam 5 milhões de fome. Só a ajuda humanitária internacional e a boa colheita de 1922 aliviam a situação.

Dois anos depois, em 1924, Joseph Stalin assume a liderança do país dilacerado pela guerra e pela fome. Naquela época, a genética era pujante e moderna também na União Soviética, com um grupo forte de cientistas mundialmente reconhecidos, como Nikolai Koltsov, Yuri Filipchenko e Nikolai Vavilov.

Mas tudo estava prestes a mudar. Catastroficamente.

Enquanto em 1926 as teorias lamarckistas são abandonadas no ocidente, por causa de interpretações "criativas" elas ainda tem um forte apelo para a ideologia soviética. O recém-formado agrônomo Trofim Lysenko propõe uma teoria lamarckista simplória e altamente contaminada ideologicamente. Ele afirma que as colheitas poderiam ser "treinadas" para obter grande produtividade, bastando apenas expô-las ao frio intenso – a chamada "vernalização". De acordo com o que Lysenko chama de "Lei da Vida das Espécies", as sementes da mesma "classe" não competiriam entre si, mas cooperariam umas com as outras, como os humanos. Aplicando o princípio marxista do materialismo, no qual as condições que cercam um indivíduo ditam seus comportamentos e respostas, ele acredita que plantas e animais também podem ser remodelados à nossa vontade com fantástica facilidade. Estas são só algumas das muitas crendices que Lysenko afirma serem comprovadas pelas suas "pesquisas".

As teorias pseudocientíficas de Lysenko ganham força quando uma safra de ervilhas que ele havia plantado no inverno anterior desabrocha espetacularmente. Ele acha que isso comprova que havia ensinado as ervilhas a crescer mesmo fora da estação simplesmente expondo-as ao frio. Embora esse fenômeno já fosse conhecido por agricultores do mundo inteiro fazia séculos, o jornal do partido comunista Pravda comemora a grande 'descoberta': "ervilhas poderiam ser cultivadas no inverno em Azerbaijão, tornando verdes os campos estéreis da Transcaucásia no inverno, para que o gado não pereça por má alimentação, e o camponês viva o inverno sem tremer pelo amanhã". Até mesmo o capim poderia ser convertido em cereal através da hibridação via enxertos e da exposição ao frio. Para piorar, Lysenko afirma que estas propriedades seriam herdadas pela prole: mais uma ideia lamarckista sem qualquer fundamento.

Enquanto isso, entre 1928 e 1931, Stalin já lidera uma coletivização agrícola forçada e uma rápida industrialização, criando uma economia socialista de comando centralizado. A coletivização de todas as fazendas da União Soviética leva a grande maioria dos camponeses sobreviventes a fugir para as cidades. Os resultados são catastróficos: colheitas destruídas e terras perdidas. As soluções simples e fantásticas de Lysenko são irresistíveis para Stalin, que lhe ordena ensinar suas técnicas aos camponeses. Rejeitando a seleção natural e a genética mendeliana, Lysenko promete transformar a União Soviética numa fazenda superprodutiva. E isso sem usar fertilizantes ou herbicidas, que foram proibidos – porque, claro, as plantas aprenderiam a se defender sozinhas.

Não surpreende que essas ideias se mostrem desastrosas, com perdas recorde de colheitas. As políticas de Stalin e a pseudociência de Lysenko trazem graves interrupções na produção de alimentos que contribuem para uma nova onda de fome no sul da Rússia e na Ucrânia, a Praga da Fome de 1932-1933. O resultado é a morte por inanição de umas 8 milhões de pessoas. A fome adquire proporções inimagináveis: a visão de pessoas morrendo na rua já não provoca reação e o canibalismo não é raro, assim como o sacrifício de crianças para poupá-las do sofrimento.

Mas nada disso diminui o poder de Lysenko e o apoio cego de Stalin.

Em 1935, durante um discurso no Kremlin, Lysenko compara seus oponentes na biologia aos camponeses que ainda resistem às estratégias de coletivização do governo soviético, dizendo que, ao se opor a suas teorias, os geneticistas tradicionais, "amantes de moscas e odiadores de pessoas", são contra o marxismo. Stalin, na plateia, é o primeiro a ficar de pé e aplaudir, gritando "Bravo, camarada Lysenko. Bravo!". A própria existência dos genes é negada, e a genética clássica é considerada "inconsistente com a filosofia do materialismo dialético".

Lysenko with Stalin - Public Domain

Bravo, camarada Lysenko. Bravo!

O apoio de Stalin ajuda Lysenko a se tornar presidente da Academia Lenin de Ciências Agrárias. O início de uma campanha agressiva contra os geneticistas acadêmicos clássicos e as tentativas de Lysenko de reviver uma versão ideologicamente informada do neolamarckismo coincidem com o "Grande Expurgo" de 1936-1938 nas mãos da polícia secreta soviética: repressões politicamente motivadas e terror na URSS. Um milhão e meio de cidadãos soviéticos são presos, incluindo centenas de cientistas de primeira linha. Metade deles são executados.

"A matemática não tem relevância para a biologia. Por isso nós, biólogos, não temos o menor interesse em cálculos matemáticos, que confirmam a inutilidade das fórmulas estatísticas dos mendelistas. Não queremos nos submeter ao acaso cego. Sustentamos que as regularidades biológicas não se assemelham a leis matemáticas." Trofim Lysenko, 1935. Lysenko portrait - Public Domain

A última grande fome da União Soviética acontece em 1947 devido à coletivização, à guerra, à seca de 1946, e à má administração das reservas de grãos. Só na Ucrânia morrem em torno de meio milhão de pessoas.

Não. Isso também não atinge Lysenko.

De fato, o apogeu de Lysenko acontece em 1948, quando a genética é oficialmente declarada "uma pseudociência burguesa" na URSS, e o lysenkoismo deve ser ensinado como "a única teoria correta". Os cientistas soviéticos são forçados a denunciar qualquer trabalho que contradissesse Lysenko. Mais de 3.000 biólogos são presos, demitidos ou executados por tentar se opor ao lysenkoismo, e a pesquisa em genética é completamente eliminada.

Só após a morte de Stalin em 1953 é que Lysenko começa a perder apoio político e poder – ainda assim lentamente. Artigos nos jornais começam a criticá-lo. Mas é apenas em 1964 que a lei que proibia criticar Lysenko é revogada. Nesse ano, o físico Andrei Sakharov, ganhador do Prêmio Nobel em 1975, discursa na Academia de Ciências da URSS: "Lysenko é responsável pela vergonha da biologia soviética e da genética em particular, pela disseminação de visões retrógradas pseudocientíficas, pelo aventureirismo, pela degradação do aprendizado e pela difamação, demissão, prisão e até morte de muitos cientistas genuínos." No ano seguinte Lysenko é demitido, mas ainda levará muitos anos para as ciências biológicas da URSS se recuperarem do gigantesco estrago. Lysenko morre em 1976.

Apesar do declínio na União Soviética, nos primeiros anos da Guerra Fria o lysenkoismo ainda mantém certo prestígio em outros países, como Japão, França, e Alemanha Oriental. Mas, sobre-tudo, domina a ciência chinesa na década de 1950, e particularmente durante o "Grande Salto Para Frente", de Mao Tsé-Tung, quando a China começa a copiar tudo o que os soviéticos fazem, incluindo a coletivização, a ciência, e, em particular, o lysenkoismo. O desastre era previsível, mas a escala da destruição supera até a soma de todas as grandes fomes soviéticas. Entre 1959 e 1961 morrem em torno de 35 milhões de chineses de fome e doenças depois que as fazendas são devastadas com a ajuda das ideias pseudocientíficas de Lysenko.

Acabou?

Que nada! As ideias de Lysenko tem eco até os dias de hoje. Poucos anos atrás ainda houve tentativas criativas de ressuscitar estas ideias na Rússia.

Mas nem tudo está perdido. Na Rússia circulam hoje várias piadas sobre Lysenko. Parece que tentava cruzar melancia com barata para aumentar a produtividade eliminando a necessidade do plantio: ao abrir a melancia, as sementes sairiam correndo freneticamente se espalhando pelo campo... Castigat ridendo mores!

Melhor ciência ou futuro sombrio

Quando se pergunta aos historiadores para que serve estudar história, o primeiro que costumam responder é que estudar história serve para aprendermos com os erros do passado. Se é assim, a trágica história de Trofim Lysenko poderia ser útil para alguma coisa, afinal de contas: nos fornecer uma ótima lição sobre porque precisamos de boa ciência. Porém, infelizmente, as reações da humanidade durante a pandemia da Covid-19 mostram que aprendemos pouco com ela e com outras histórias similares.

Sem dúvida a alta velocidade na obtenção das vacinas foi uma vitória espetacular da ciência, demostrando a sua competência e relevância para a humanidade. Também é verdade que a abnegação dos profissionais da saúde e de serviços essenciais foi heroica, muitos deles pagando com a própria vida ou a dos seus familiares pelo sacrifício.

Por outro lado, a grande proporção da humanidade que duvida das vacinas, da utilidade das máscaras, e até da existência da própria pandemia chega a ser deprimente. Agora, na nossa opinião, o ponto mais baixo de todos é a quantidade assustadora de médicos negacionistas ou mesmo colaboracionistas. Estes pseudocientistas foram os principais avalizadores do negacionismo de grande parte da sociedade e, portanto, são os principais responsáveis por milhões de vidas perdidas estupidamente durante a pandemia. Ainda por cima, obrigaram muitos bons cientistas a perder seu precioso tempo, tendo que ir aos meios de comunicação para tentar conter os estragos causados pelos falsos gurus. Nada disso era necessário, nada disso deveria ter acontecido.

Sim, precisamos de mais ciência pública, de mais educação pública e, portanto, de mais financiamento público para elas. Mas isso não basta. A União Soviética tinha tudo isso de sobra nos anos 20 e de nada adiantou. Precisamos também de MELHOR ciência e de MELHOR educação. Precisamos de melhor educação básica em ciência, e de mais rigor nas universidades e institutos de pesquisa para filtrar com maior eficiência este tipo de "profissionais", que nunca deveriam ter saído de qualquer universidade com um diploma. Precisamos defender as instituições de fomento à pesquisa para que não sejam destruídas pela política, como acontece hoje.

E nós, cientistas, devemos fazer o impossível para não aceitar qualquer interferência política na ciência e na educação. A autonomia das entidades científicas, educacionais, e de fomento é fundamental. Basta imaginar o que teria acontecido nos últimos anos sem a autonomia universitária. Infelizmente, não foi suficiente.

Não nos enganemos. O pior ainda está por vir. A pandemia da Covid não chega nem aos pés dos gigantescos desafios que a humanidade vai precisar encarar nos próximos anos. Como é que vamos reagir às mudanças climáticas? E à maciça destruição ambiental global em curso? À atual sexta onda de extinção em massa, esta provocada por nós? À superpopulação? À falta de recursos? À falta de oportunidades, perspectiva e esperança para os nossos filhos?

Só uma coisa, porém, é certa: se queremos um futuro melhor para todos, precisamos urgentemente aprender a falta que a boa ciência faz.

Cronologia

Quadro comparativo das cronologias da genética e a influência de Lysenko na União Soviética. Clique nos títulos ou passe o mouse em cima para obter mais informação.

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